O encontro das várias e eternas cidades
Ivan Sarney
Esta semana, São Luís festejou 398 anos de sua fundação. Orgulho para todos nós que aqui nascemos, que aqui moramos, cumprindo nossa vida no convívio deste espaço urbano que foi palco de muitas lutas cívicas e políticas, algumas delas, integrantes da história de nosso país.
A primeira planta da cidade, que deu origem à construção de edificações de caráter oficial e de moradias, é de autoria do engenheiro português Francisco Frias de Mesquita, datada de 1624, doze anos após sua fundação, e já com a colonização portuguesa devidamente consolidada.
Ali estão registradas a Praia Grande, a rampa do Viaduto, a antiga Avenida Maranhense (atualmente D. Pedro II), a Rua de Nazaré, a Praça Benedito Leite, o Largo do Carmo, a Rua Grande, a Rua Formosa, a Rua Portugal, a Rua da Estrela, mostrando a estreita ligação da cidade com o porto, com o cais, com o mar, a partir de onde ela se desenvolveu.
A cidade atravessou esses quase quatro séculos, vivendo um longo processo de estagnação econômica, até a primeira metade do século XVIII, e experimentando ciclos de desenvolvimento, a partir de então. Essa trajetória envolveu a agricultura de subsistência, o ciclo do gado, da cana-de-açúcar e do algodão, chegando à fase da navegação e da industrialização.
A criação da Companhia de Navegação do Grão Pará inaugura uma fase de prosperidade que vai dominar a segunda metade do século XVIII, e conduzir ao encontro da industrialização que caracterizou o século seguinte. No final do século XIX e início do século XX, um grande parque fabril é instalado em nossa cidade e vai constituir a base de seu crescimento urbano, de seu desenvolvimento econômico, até primeira metade do século XX, quando essa fase se extingue, com o fechamento das fábricas.
A São Luís que acolheu as magias infantis de minha geração, que nos alfabetizou nas primeiras escolas, foi construída, basicamente, nas fases que se iniciaram na segunda metade do século XVIII. Uma cidade elegante, pacata, que tinha bondes elétricos, como matriz de seu transporte coletivo; que tinha luz elétrica, gerada com paus-de-mangue; que tinha postes de ferro, com luminárias em louça; que tinha retretas nas praças, nas tardes de domingo; que tinha menos de 80 mil habitantes; que amanhecia orvalhada, todos os dias; que tinha o Bacanga e o Anil como limites espaciais, e o Caminho da Boiada, como um espaço de fuga, por onde a cidade passava para encontrar o continente.
Uma cidade que nos acolhia, pacata, na vertigem de suas ladeiras, no espelho cromático de seus sobrados azulejados, no canto sonoro de seus pregoeiros, nos mirantes voltados para as águas, nas sacadas de ferro e nos telhados de várias águas, com beirais alongados.
Essa cidade que nos viu crianças só mostrou-se plenamente, a nós, mais tarde, na adolescência, quando já era possível percorrer suas ruas estreitas, a caminho da escola, do Largo de Santo Antônio, de Nossa Senhora dos Remédios, da Missa do Galo, das procissões do Encontro e de São Benedito, da festa da melancia, na Beira-Mar, e nos passeios de bonde.
Além disso, era a cidade que nos entrecortava o sono com o barulho de suas lendas. A lenda da carruagem de Dona Ana Jansen, que vagava pelas madrugadas, nas sextas-feiras, arrastando correntes, gemidos, murmúrios de dor, de negros escravos fenecidos sob açoites. A lenda da Manguda, personagem sem faces que atacava nas noites de maré cheia, os que andavam pelos cais. A lenda da serpente encantada que rodeia a ilha, e que a afundará quando for despertada do sono em que se encontra.
Era a mesma cidade bucólica que nos fremia com suas festas populares mais tradicionais, simbolizadas pelo São João e pelo Carnaval. Na primeira, resplendiam as brincadeiras de bumba-meu-boi, com a representação inteira de seu auto popular, teatro de rua da mais pura gênese, dessa arte milenar. Resplendiam, ainda, o tambor de crioula, as quadrilhas, as fogueiras, os balões coloridos, os fogos de artifício, e as crendices ligadas a santo Antônio, como santo casamenteiro. Na segunda, eram as escolas de samba, os blocos, os corsos, os bailes de máscaras, os “assaltos” carnavalescos, os blocos de sujo, a casinha da roça, e as vesperais do clube Lítero e do Casino, sempre pontilhadas de lança perfume, de encantos e fantasias.
A ponte do São Francisco, inaugurada no final dos anos sessenta, representou o mais importante diálogo da cidade com o seu futuro, juntamente com a barragem do Bacanga e a ponte do Caratatíua. Por ela passaram os projetos, os tijolos, as telhas, as ferragens, o cimento, o concreto, os sonhos de moradia, os escritórios e as esperanças de milhares de pessoas que hoje, de algum modo, dão vida e habitam a nova cidade.
O bairro do São Francisco, e todos os outros bairros que surgiram, a partir da ponte, contemplam hoje a cidade antiga, vendo seus templos resplenderem na noite, suas edificações oficiais, simbolizadas no Palácio dos Leões, e todo o encanto de luzes que se perfilam ordenadas, no trajeto das ruas estreitas que vêem desaguar na Beira Mar.
A cidade do século XXI, povoando-se de edifícios que competem, entre si. Competem em formas, em gabaritos, em soluções contemporâneas para a necessidade de morar bem, de viver melhor. Mas não competem com os sobrados de azulejos da cidade antiga que os exibe, orgulhosa, como uma vitória sobre o tempo. A cidade está além de nós, além dos homens, imortalizada por sua história, pelos referenciais que guarda e expõe, em cada forma que reflete o homem e seu tempo, materializando costumes, hábitos, modos de refletir quem somos, quem fomos e, de certo modo, quem seremos. Várias cidades se encontram, mudas, na cidade que podemos ver, de um e do outro lado da ponte, dentro e fora de nós. Um diálogo permanente e necessário para o novo amanhã.
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