''Desde criança sou um boieiro fanático''
Jock Dean
Da equipe de O Estado
Aos 70 anos e com a saúde já sofrendo com o peso da idade, Mané Onça ainda faz jus ao apelido que lhe foi dado, assim que ele começou a carreira de cantador de bumba-meu-boi. “Todo mundo dizia que eu tinha cara de mau, que era muito bravo, feito uma onça, então começaram a me chamar de Mané Onça. Se perguntar por Manoel ninguém vai saber, mas pergunta por Mané Onça que não falta quem lhe fale sobre mim”, garante. A expressão austera e a voz de quem parece estar zangado ajudam a entender a origem do apelido.
Manoel Leôncio se tornou Mané Onça aos 19 anos, no bairro Madre Deus, quando começou a cantar boi, mas desde a infância que ele já estava envolvido com o folguedo junino. “Eu acompanhava os cantadores mais velhos nas apresentações. Conhecia toda a turma da Madre Deus que participava do São João. Desde criança sou um boieiro fanático”, afirma. Mas ainda aos 19 anos ele se casou pela primeira vez, então abandonou o ofício.
Após quatro anos afastado dos terreiros juninos, Mané Onça decide voltar a cantar. “Eu morei na Madre Deus a maior parte da minha vida. Só me mudei de lá em 1983, então vivia o São João, pois mesmo sem cantar eu freqüentava os arraiais”, comenta. Mas insatisfeito com as brincadeiras juninas da época ele resolveu, junto com outros cantadores, fundar um novo grupo de bumba-meu-boi. Assim, em 1963 nascia o Boi da Madre Deus.
Foi ao lado de um dos seus ídolos da infância, o cantador Marcelino que Mané Onça fundou o novo grupo de bumba-meu-boi. “O cantador que eu mais acompanhava quando criança era ele. Quando tive a idéia de criar o bumba-boi, cheguei para Sabiá, outro boieiro dessa época, e perguntei o que ele achava. Ele aceitou de pronto e disse que a gente só precisava da ajuda do Marcelino que também entrou na nossa e assim nos apresentamos já no São João de 1963”, lembra.
Ele lembra que no seu primeiro ano a brincadeira já possuía um grande número de integrantes, mas pouco dinheiro para indumentárias, apesar disso, eles ficaram em terceiro lugar em um concurso promovido pela Secretaria Estadual de Cultura. “Naquela época, os bumba-bois disputavam entre si em um concurso que o estado promovia. Quando nos apresentamos ninguém acreditava na gente, mas surpreendemos”, informa.
No ano seguinte eles ficaram com o primeiro lugar do concurso, façanha que se repetiu por 15 anos consecutivos. “Os grupos de bumba-meu-boi já chegavam no local desmotivados, pois nós sempre vencíamos. Na época em que o concurso acabou, 1979, a Secretaria de Cultura chegou a dizer que estava acabando o concurso porque estava chato todo ano o mesmo grupo vencer”, diz.
Enquanto se tornava a voz de um dos mais tradicionais grupos de bumba-meu-boi do Maranhão, Mané Onça também se tornou um dos seus principais compositores. Ele não lembra ao certo, mas contabiliza algo em torno de 2 mil toadas compostas para o Boi da Madre Deus. “Não lembro mais quantas e quais compus. A memória já está fraca. As que compus esse ano, ano que vem não lembrarei mais, além disso, não gosto de cantar toada antiga. Só canto porque e quando o povo pede”, conta.
Dentre as mais pedidas pelo público em todo São João ele lembra apenas o verso de abertura. “Chegou o tempo garota, corre pra perto, vem ver...”, canta dizendo que na apresentação o público canta junto e o ajuda a lembrar o resto da letra. Ele disse ainda que essa é a única vantagem que vê nas toadas velhas. O fato de todo mundo saber a letra.
Das primeiras toadas compostas, uma ele lembra com orgulho, pois, segundo ele, a música é tida como o hino da Madre Deus, bairro do qual ele se mudou em 1983, quando casou pela segunda vez indo morar no bairro Lira, após o falecimento da primeira esposa, mas que é seu pedaço preferido de São Luís. “É hora terreiro velho, vem confirmar o teu valor. Na Madre Deus é bom quando amanhece e se vê o resplendor...”, cantarola.
Para o São João desse ano, ele escreveu 12 toadas e lamenta que não possa apresentar todas nos arraiais. “Hoje em dia ninguém mais pode contar o auto direito. O tempo para apresentação é muito pequeno, além disso, tem tanto tipo de boi agora. A tradição está se perdendo. Eu não concordo com essas brincadeiras de hoje em dia”, fala em tom de crítica.
Dos seus 51 anos de cantoria, 48 deles à frente do Boi da Madre Deus, ele lembra com tristeza o ano de 2002 quando não pode se apresentar por motivos de saúde. Após um atropelamento em frente ao Ceprama ele precisou ficar quatro meses em tratamento com a perna engessada. “Tive também que fazer uma cirurgia. Foi um tempo difícil, então deixei o São João nesse ano para cuidar da minha saúde”, fala.
Mas esse breve momento de tristeza é quebrado pela lembrança dos diversos locais que teve a oportunidade de conhecer graças ao Bumba-meu-boi. “A gente é muito convidado para se apresentar pelas pessoas que valorizam o Sotaque da Ilha que é o mais tradicional. Essas modernidades de hoje são bonitas de vê, mas não tem a tradição que nós temos. Conheci lugares muito bonitos que nunca imaginei que pudesse ir nesse Brasil”, comenta.
Dentre esses locais estão as cidades de São Paulo, Teresina, Fortaleza, Recife, Curitiba, Brasília, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Natal onde aconteceu um fato engraçado, na visão do cantador. “Eu vim embora antes do tempo. Na verdade, um dos brincantes precisou voltar porque faleceu um ente querido dele e não podíamos nos apresentar sem ele e nós já estávamos há muito tempo viajando, eu estava com saudade de casa, então vim embora também”, conta.
O cantador torce para que algum neto assuma a frente da brincadeira quando ele não puder mais cantar de fato. “Tenho um neto, Ivaldo, que tem 22 anos, que já canta conosco. Ele é bastante empenhado. Há quem diga que ele será meu herdeiro. Eu espero que sim”, diz. Sobre parar de cantar ele é categórico. “Nenhum cantador de bumba-meu-boi pode anunciar que vai se aposentar. Isso não depende de nós”, garante.
O amor ao bumba-boi entre outras atividades
Quem vê Mané Onça puxando o Boi da Madre Deus nos arraiais juninos talvez não saiba que o cantador, quando está fora dos terreiros, é funcionário público estadual. Há quase 40 anos ele trabalha na Universidade Estadual do Maranhão (Uema) como agente de portaria. E há três décadas, para cumprir com suas funções na universidade e não deixar o bumba-meu-boi de lado, ele programa suas férias para o período junino.
Ele conta que começou a trabalhar ainda aos 12 anos, na antiga Fábrica de Tecidos onde hoje funciona o Ceprama, quando precisou largar os estudos. “Na verdade, eu larguei uns anos antes. A gente não tinha as facilidades de hoje, esse tanto de escola e minha família era grande, além disso, a vida toda nós precisamos abrir mão de alguma coisa vez ou outra. Não me arrependo”, garante.
Foram 7 anos no local. Depois ele trabalhou na Fábrica Santa Isabel e na construção do Porto do Itaqui. “Nessa época jamais imaginaria que viria morar na região do Bacanga. Moro aqui desde 2004. Minha segunda esposa faleceu aqui e aqui conheci minha atual mulher. É uma área boa que se perdeu com a construção da barragem”, acredita.
Ele trabalhou ainda em outras fábricas da cidade até, em 1974, passar a integrar o corpo de funcionários da UEMA onde está há exatos 37 anos. “Minha vida melhorou muito depois disso. As pessoas têm a ilusão que cantador de boi vive bem, ganha dinheiro, mas não é bem assim. Temos que nos virar o resto do ano para poder pagar as contas”, frisa.
Para poder conciliar as duas tarefas que desempenha, ele programa as férias para o período junino, mas reclama a mudança de data da festa. “Antigamente os bois saíam dia 24 de junho, dia de São João, hoje eles saem no começo do mês e quando morrem o São João já passou há muito tempo. Bem, acho isso errado, mas tenho conseguido cumprir meu papel junto à São João, principalmente porque o amor que tenho pela brincadeira é maior que tudo”, finaliza.
RAIO-X
NOME COMPLETO:
Manoel Leôncio Mendes
Nascimento:
18 de junho de 1940
Naturalidade:
São Luís (MA)
Filiação:
Maria das Dores Mendes
Francisco Barbosa Mendes
Estado civil:
Casado há 3 anos com Raimunda Pinheiro Mendes
Filhos:
10
Qualidade:
Fé
Defeito:
Impaciência
Alegria:
Família e o Boi da Madre Deus
Tristeza:
Perda de pessoas queridas
Saudade:
Dos pais já falecidos
Planos:
Viver muitos anos para poder continuar cantando
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