''Acho que a vida só vale quando a gente faz um riso''
Jock DeanDa equipe de O Estado
Quem nunca ouviu ou cantou os versos “Mas é que o vento buliçoso balançava teus cabelos” talvez não conheça bem o São João do Maranhão ou talvez apenas desconheça as origens de uma das toadas mais populares do estado, que ultrapassou fronteiras ganhando, para alguns, ares mais aristocráticos em vozes como a de Maria Bethânia nos idos dos anos 1990. Mas se por acaso alguém achar que o autor da toada sinta-se majestoso pode se enganar, pois, em outra toada, Donato Alves manda avisar: “Eu nunca vi coroa na cabeça de quem canta boi.”Conhecido entre os demais cantadores como o Canário de Veneza, Donato, que há 48 anos dá voz ao Boi de Axixá, costuma dizer que a idade, 79 anos, e seus problemas de saúde não lhe permitem mais fazer planos para o futuro e isso inclui continuar contando o auto do bumba meu boi. Mas ele diz também que a decisão de deixar o posto não é sua, mas do povo, que, segundo ele, ainda não lhe deu permissão para se aposentar. “Acho que todo cantador da minha época pensa assim. Muitos de nós já estamos com a saúde bastante debilitada, mas nos tornamos a cara do boi no qual cantamos. Acho que de certa forma nós representamos o espírito do São João”, afirma.
Vítima, em 2000, de um Acidente Vascular Cerebral (“derrame”) que limitou seus movimentos, obrigando-o a se apoiar em uma bengala, Donato diz que não tem o que reclamar da vida, que foi sempre de muito trabalho, não só por necessidade, mas sobretudo por escolha, pois ainda muito cedo ele aprendeu a importância da independência financeira. “Eu sempre gostei de ter meu próprio dinheiro. Nós éramos seis irmãos. Todos trabalhavam. A vida não era muito fácil no interior do Maranhão quando eu era jovem. Com 8 anos eu comecei a trabalhar e desde essa idade meu pai não teve que se preocupar com meu sustento”, orgulha-se.
Donato morou por 40 anos no pequeno povoado de Veneza, na cidade de Axixá, onde nasceu em 1932. Durante esse tempo, ele desempenhou as mais diversas atividades, mas duas foram as mais constantes. Foi pescador e dentista prático, segundo ele um dos mais procurados do estado. Foi ainda na localidade que ele deu seus primeiros passos, ou versos, no São João. “Naquela época, desde muito cedo se começava a frequentar os terreiros, a participar das brincadeiras. Hoje, as crianças vão para os arraiais ver o boi dançar. No meu tempo, a gente ia ajudar a preparar o boi”, lembra.
Mas o envolvimento definitivo com o Boi de Axixá viria anos depois. Aos 18 anos, Donato mudou-se para o bairro Pau Deitado, no município de São José de Ribamar, onde trabalhou como pescador. A vinda para a Ilha deveu-se, dentre outras coisas, pelas melhores condições de vida. Além disso, muitos nascidos em Veneza também moravam na localidade. Mas quatro anos depois o pescador decidiu voltar para sua terra. “Eu e minha família sempre fomos muito ligados. Com o tempo, passei a achar desinteressante morar no bairro e decidi voltar para casa. Coisa da juventude”, diz.
De volta à casa da família, foram oito anos dedicados quase exclusivamente à pesca, até que em 1962, quando frequentava com mais constância os ensaios do Boi de Axixá, o grupo transferiu sua sede para São Luís. Nesse processo, ele foi convidado pelo dono da brincadeira a vir junto e a atuar mais na preparação do boi para o São João. Foi quando Donato compôs sua primeira toada. “O boi iria se apresentar para diversos políticos do estado e da capital, incluindo o prefeito e o governador, além de outras autoridades quando descobrimos que não tínhamos toada para apresentar”, revela.
Foi então que Chiquinho, o dono do Boi de Axixá, pediu a Donato que escrevesse a canção. Ele o fez e, no caminho para o local do evento, ensinou o então cantador do Boi Axixá, Mestre Milton, a letra da canção que lhes rendeu o campeonato do São João daquele ano. “A idade me roubou algumas memórias. Dentre elas a letra dessa toada, mas lembro que ficamos todos muito felizes com a vitória depois do aperto que passamos”, comenta.
No ano seguinte, Donato foi convidado mais uma vez a escrever toadas para o boi, mas um desentendimento entre Mestre Milton e Chiquinho deixou o Boi de Axixá sem cantador. Já popular por causa da vitória no ano anterior, Donato foi convocado a dar voz a sua canção. “São Luís é minha terra querida. Tem o governador, homem de bom coração. Eu vim saudar o prefeito da cidade...”, cantarola os poucos versos que ainda lembra da toada que escreveu em 1963, ano a partir do qual passou a ocupar também o posto de cantador do Bumba meu boi de Axixá.
Naquele ano, o campeonato foi do estreante Boi da Madre Deus e seu sotaque de matraca, lugar que ocuparia por quase 15 anos consecutivos, mas Donato garante que isso não apagou o brilho do boi do Munim e seu sotaque de orquestra. “Ao contrário do que muita gente pensa, existe uma relação muito harmoniosa entre os cantadores de boi mais antigos. A turma mais nova é que gosta de provocar, achando que sabe mais que nós, que ajudamos na evolução do bumba meu boi no estado. Eu, aliás, sou visto por muitos cantadores da minha época como uma das figuras mais importantes dessa evolução”, garante.
Nesses 48 anos de bumba meu boi, Donato contabiliza quase 400 toadas, que foram registradas em disco, mas o total de composições é muito maior que isso. Tanto que ele diz não lembrar. “Eu sei que só em 1964 escrevi 48 toadas. Naquele tempo, muitas saíam de improviso. A gente chegava ao local da apresentação e alguém pedia uma música especial e a gente fazia. Hoje, ficou tudo mais engessado”, afirma, mas sem criticar, pois, segundo ele, apesar de ter sido melhor nos anos 1960, 70 e 80, ainda hoje, a festa guarda sua áurea religiosa que, para ele, é o mais importante.
Das inúmeras toadas que compôs, uma é tida por muitos como o hino do Boi de Axixá e um dos maiores clássicos do São João maranhense: “Bela mocidade”, composta em 1979. A inspiração, ele garante, veio literalmente do brilho da lua e da areia do mar. “Eu gosto muito dessa toada, até porque com ela meu trabalho ficou mais conhecido, mas eu a escrevi durante uma viagem de lancha para Axixá. Acho que a letra é muito mais bonita que a forma como ela nasceu”, brinca.
Morando em São José de Ribamar, dividindo seu tempo entre o bumba meu boi, o consultório de dentista e a pescaria, Donato encontrou-se com o cantador do Boi Brilho da Lua na praia. Algumas garrafas de vinho depois, os dois decidiram descer rumo a Axixá. Na lancha, ao passar pela praia da Coroa Santa, o cantador do Brilho da Lua desafiou Donato a escrever uma toada. Sem muito esforço, ele fez a letra e, para não esquecê-la, passou a travessia inteira cantando.
Mais de 30 anos depois, a toada mais famosa do São João do Maranhão tem pelo menos 15 regravações. A primeira delas ainda nos anos 1980, feita pelo cantor Papete. Também deram nova vida à canção Zeca Baleiro, Roberto Ricci, Rogério do Maranhão, Tereza Cantu, Rosa Reis, Fernando de Carvalho e a Tribo de Jah. A projeção nacional da toada e seu cantador veio em 1996, quando Maria Bethânia incluiu a música no show “Âmbar”. “Sinceramente, eu me sinto muito honrado pela repercussão dessa toada, mas nunca tive essa pretensão. Tudo o que fiz e o que vier a fazer é só pelo amor que eu tenho ao São João”, diz Donato, resumindo seus quase 50 anos de festas juninas.
Uma trajetória de muito trabalho e perseverança
Ser cantador de boi é muito mais uma devoção que uma profissão, garantem alguns dos mais antigos ocupantes dessa função. Para eles, não há salário que pague a emoção de cantar o auto mais famoso do folclore popular do estado. Donato, em 48 anos de cantoria, desempenhou as mais diversas profissões para sustentar a esposa e seus seis filhos.
A pescaria ocupou a vida de Donato por quase 60 anos. Ele deixou as redes de lado aos 67 anos por causa dos seus problemas de saúde. “Eu gosto muito de trabalhar. Sinto falta desse tempo, quando eu era mais ativo, mas não se pode lutar contra a vontade de Deus. Hoje sou aposentado e o Boi de Axixá é uma das poucas alegrias que ainda cultivo, pois não faço mais planos, apenas vivo”, fala.
Foi no período em que se mudou pela primeira vez para São José de Ribamar que Donato teve contato com sua futura segunda profissão. Um cunhado que também morava na localidade Pau Deitado, João Valério, foi quem lhe incentivou a estudar o ofício de dentista. “Eu sempre aprendi muito rápido. Eu observava meu cunhado trabalhar e, lendo alguns livros que ele me deu, aprendi o trabalho de dentista. Fiz alguns atendimentos, mas só me dediquei mesmo à prática da profissão muitos anos depois quando já estava casado”, conta.
O casamento deu-se em 1977. Neste ano, ele se mudou com a esposa para Icatu onde montou o primeiro consultório atendendo por quase três anos. Por incentivo do cunhado dentista, foi definitivamente para São José de Ribamar e fez carreira como dentista prático. Dona Conceição, esposa do cantador, garante que ainda hoje muita gente o procura quando tem problemas dentários.
Hoje, aos 79 anos, e muitas histórias para contar, ele lamenta as traições de sua memória, mas garante que isso não o entristece. “Eu sei que fui um homem muito feliz. Mesmo hoje, com todos os meus problemas, sou um homem que se orgulha de tudo o que teve, fez e viveu”, finaliza.
RAIO-X
NOME COMPLETO:
Donato de Paiva Alves
DATA DE NASCIMENTO:
17.02.1932
NATURALIDADE:
Axixá (MA)
FILIAÇÃO:
Ana Anúsia de Paiva Alves
Bernardo dos Santos Alves
ESTADO CIVIL:
Casado há 34 anos com Conceição de Maria Almeida Alves
FILHOS:
Seis
QUALIDADE:
A voz que Deus me deu
DEFEITO:
Isso quem pode falar são os outros
ALEGRIA:
O Boi de Axixá
TRISTEZA:
AVC
SAUDADE:
Dos pais, já falecidos
PLANOS:
Não faço mais planos. Minha idade e minha doença não permitem isso. Enquanto Deus quiser, vou levando a minha vida.
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