Malazartes - Jesus Santos
Soube por Eliezer Moreira e outros amigos fraternos, que Sálvio Dino com grande generosidade, lembrou de mim como incondicional amante da cidade de São Luís em sua crônica semanal.
Confesso minha paixão pela cidade, o que não é difícil para quem tem o bom gosto de amar quem merece amor apesar das péssimas companhias com as quais várias e repetidas vezes ela se mete. Coisa das mulheres que se dão às fantasias de corrigir aqueles aos quais ela se entrega em desatino, vitimada pela paixão ou o voto.
São Luís como todos nós nasceu e cresceu cercado de praias e mangues espiando ora mulheres cujo delinear de linhas supera Michelângelo, Rafael e Leonardo juntos, ora encarando caranguejos ferozes, que nas festas de Momo, saem pela lama em bloco de sujo comemorando o Carnaval. Essas diferenças para o bem ou para o mal tornaram essa cidade única.
Banhada por sol intenso, às vezes afogada em chuvas diluviais, a cidade é sempre inesperada e singela, indo dos sobradões senhoriais à porta e janela com a mesma elegância, guardando os mesmos mistérios. A elegância guardada em cada linha, em cada volume não é para ser usada ou demolida mas sim para ser contemplada, e essa infecção de progresso que nos ameaça sem acenar com qualidade de vida, esse progresso que se avizinha por não caber lá fora e no qual parece que nós participaremos com o espaço físico, talvez não veja com que delicadeza se contou nossa história singular guardada em platibandas, sacadas, beirais e grades, esculpidas em mármore de Lioz, só para eternizar cada façanha.
Quando a noite chega, superado o mais lindo pôr-do-sol desse quadrante, um cheiro de jasmim do cabo flutua leve em cada esquina e cada beco. Os paralelepípedos rutilam a cada luz, seja essa luz da lua cheia ou da mais distante estrela. Ladeiras se precipitam para nossa mortificação, porque são muitos os pecados dos viventes que pecam por omissão, esquecimento, preguiça e mentira. A única verdade na cidade de São Luís é ela mesma.
Se nos dermos tempo e na cidade velha apurarmos a audição, ouviremos o diálogo fuxiqueiro dos ventos levando e trazendo notícias que compõem nossa própria história. Nas janelas do primeiro andar dos sobrados, repousa a memória de moças donzelas ávidas de casamento, virgens ou não, que ninguém é de ferro. E pelo rés do chão lá nas pedras e nos mosaicos onde ficam a cozinha e a criadagem, depois do jantar, ouviremos estória de “alma” que são verídicas apesar dos impossíveis. Essa relação com o impossível, com o fantástico é que me levou a pintar, não para decorar esta ou aquela sala ou outro ambiente, mas para registrar a memória de um momento que em breve só não estará esquecido porque alguns de nós tivemos a sensibilidade e a coragem para não retroceder e abdicar, diante do fácil, do acomodado e fútil.
Viver com São Luís exige arte e manha. Não só os inúmeros sobrados em ruína lembram castelos medievais, mas nosso pensamento e comportamento social é medievo. Guardamos tronos, escudos, brasões, armas e outros “penduricalhos” para nos preservarmos intocáveis e eternos em nossa própria fantasia. Amamos tanto o irreal que elegemos mentiras e depois a assumimos como verdade maior, capazes de matar e morrer por ela. Assim, concluo que sejamos realmente a maior concentração de poetas do mundo, afinal “o mundo condena os mentirosos que só sabem mentir, até mesmo sobre coisas mínimas, e premia os poetas que mentem apenas sobre coisas grandiosas”.
Se um dia São Luís tiver uma única chance, e parece que agora poderemos ter, afinal teremos um ministro no turismo que é expert em orçamento, se tivermos projetos de qualidades com inteligência e espírito público e não só esperteza, devolveremos a auto-estima ao cidadão e redescobriremos nossos valores como modelo e não nossos hábitos político administrativos, danosos à cidadania, quem sabe tenhamos uma única chance.
São Luís precisa de um amor normal, comum, em nada sadomasoquista. Como toda mulher que caminha nas ruas, travessas e becos há tantos séculos enriquecendo seus gigolôs, enquanto adoece despenca e morre, ela pelo menos merece respeito em sua memória. A cidade, apesar de mal amada, mantêm uma dignidade única.
Sem dúvida está em nós, manter a alma da cidade leve, livre e solta. Como hoje a nova geração não tem com ela compromisso algum, nasceram longe dela e dela se sentem apartados, e como seus pais nascidos nela não há conhecem, em breve virão “empresas do sul” para adquiri lá e conviver com ela.
Não pense o leitor amigo que eu não sei que duas pontes e uma barragem me ligam aos extremos da cidade, sei. Mas minha alma não transita em barragens e não saltita em pontes. Minha alma continua pregada no bimbalhar e no dobrar dos sinos nos pregões e no gritar das crianças, no bolero cantado em lagrimas pelas mulheres da zona, ou na bossa nova lamuriosa recitada em baixo da janela, nos acordes de Zequinha Boemia. Já não compomos hoje desatinos como antigamente.
Os fantasmas da “Cidade Velha’ não admitem réquiens. Não querem seus nomes gravados em mármore, mas desejam com absoluta certeza habitar em nossa memória, para sempre. São Luís, meu caro Sálvio Dino, é um memorial único à brutalidade humana que dela se assenhoreia. O que sobra das ruas e sobrados, telhados e sacadas, lembranças e sortilégios esquecidos no vértice entre a ponte e a barragem, somos nós, cavaleiros andantes sem Távola e sem Graal, com nossos escudos no formato e nas cores dos papagaios que empinávamos, usando cartolas de carnaval como elmos, declamando versos para Dulcinéias nos balcões da Marocas, Novacape ou Oásis sem norte ou sul sem eira nem beira esperando milagres que só a fantasia elege, como aconteciam nas vesperais do Lítero ou no Grito de Carnaval do Baile do Moisés.
É por isso que mantenho essa delituosa paixão pela memória e pela paisagem de hoje na São Luís antiga. Atento espero o tempo dos ventos do calor e das chuvas. Deitado em uma rede na varanda, ouço o vento na cumeeira e o farfalhar das folhas dos coqueiros. Só essa memória me remete ou traz os tempos antigos que o tal progresso de carros e desmatamentos suprime aos poucos. Aos poucos, tudo será memória a única coisa que não depende do investimento público e por isso existe. Em muito pouco tempo, nós astronautas de nossas fantasias, pousaremos no desterro, na Rua Grande no Caminho da Boiada no Senado da Praça João Lisboa e quem sabe em noite de lua passearemos no Largo dos Amores ou conversaremos animados nos degraus da Igreja de Seu Pantaleão.
Só então meu caro Sávio, sentiremos em pedra e cal o abraço da cidade e com a triste e misteriosa luz da Ulem, nos despediremos cedo e seguiremos logo para casa, antes do Timbira Faz Amigos e antes do carro de Ana Jansen.
malazartes50@hotmail.com
Um comentário:
A cidade e seu povo são duas e ntidades cúmplices. Eu amo São Luís. É dever das autoridades públicas amá-la e tratá-la com maior responsabilidade. Vamos dar oportunidade aos atuais ludovicenses terem saudade de sua cidade.
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