Jornal GGN - Gregorio
Duvivier, humorista e colunista da Folha de S. Paulo, comenta as
agressões sofridas por Chico Buarque na semana passada, rememorando sua
infância e dizendo que "o mais perto que tinha de religião lá em casa
era a música". Ele diz que herdou dos pais a devoção pela música e que
encarou as ofensas contra Chico Buarque "como se chutassem uma santa ou
rasgassem a Torá". Por último, ele afirma que "a oposição e sua trilha
sonora se merecem".
Da Folha
Gregorio Duvivier
Nunca aprendi a rezar o Pai Nosso.
Comemorávamos Natal só porque é aniversário da minha mãe. Celebrávamos a
Páscoa, mas confesso com bastante vergonha que não faço ideia do que
significa. Sim, sei que tem a ver com Jesus. Mas não sei qual era a
relação dele com o coelho, e nem por que raios esse coelho põe ovos, e
por que diabos são de chocolate.
O mais perto que tinha de religião lá
em casa era a música: meus pais só veneravam deuses que soubessem tocar.
Ninguém rezava antes de comer, mas minha mãe botava a gente pra dormir
religiosamente cantando Noel e acordava cantando Cartola. Meu pai
passava o dia no sax tocando Pixinguinha e a noite no piano tocando
Nazareth. Música não era um pano de fundo, era o caminho, a verdade, a
vida. Tom era o Pai, Chico, o Filho, Caetano, o Espírito Santo.
Podia falar os palavrões que eu
quisesse, mas ai de mim se ousasse tocar violão com acordes
simplificados. "A pessoa que fez esse arranjo devia ir presa", dizia
minha mãe. Preferiam me ver pichando muros a me ver batucando
atravessado. Quando descobriram que eu fumava maconha, meus pais me
disseram que não tinha nada de errado, desde que eu só fumasse em casa.
Quando eu comprei um CD do LS Jack, disseram que não tinha nada de
errado, desde que eu nunca ouvisse aquilo em casa.
Às vezes organizavam um sarau que
parecia missa. "Silêncio, que se vai cantar o fado", dizia a Luciana
Rabello, e daí tocavam choro como quem reza. Todos se calavam como numa
igreja. A criança que abrisse o bico tomava logo um tabefe. Aquilo era
sagrado. Pra mim, ainda é.
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