domingo, 27 de março de 2011

Carta de um piauiense em resposta ao ódio de Ferreira Gullar a Lula

 

Poeta Gullar não suporta o ex-presidente Lula
 
(MS, 27/03/2011, às 10:47:30)

O poeta Ferreira Gullar usou com frequência sua coluna no jornal Folha de S. Paulo para atacar o ex-presidente Lula. Em carta ao painel do leitor no dia 19 de janeiro, o oftalmologista Elisabeto Ribeiro Gonçalves criticou a "negação rancorosa e irracional da grande obra do ex-presidente nordestino".

Nem um trecho foi publicado pelo jornal. O autor, que é piauiense e cidadão de Belo Horizonte, solicitou à Coluna Brasília do Acessepiaui espaço para manifestar a contestação ao artigo de Gullar "Quando dois e dois são quatro", do dia 16 de janeiro. Elisabeto mostra ao poeta que é um conhecedor profundo da sua premiada obra e, com o auxílio dela, emiuça o "irreconhecível" reacionarismo a que se entregou Gullar.

Diz um decepcionado Elisabeto: "Pareceu-me, poeta, curiosa a coincidência entre o título de sua matéria (Quando dois e dois são quatro) e o título de uma das mais belas, comoventes e ternas poesias suas (Dois e dois: quatro). Curiosa porque sua coluna na Folha é bizarra, incoerente, e deslocada da realidade, parecendo sair da pena de  outro qualquer, menos da sua. Seu poema, ao contrário, é o retrato fiel do Gullar que eu conheci e aprendi a admirar e querer bem. Sua matéria  da Folha é áspera e equivocada, traindo, ao que parece, o homem, o cidadão reto, o artista criador e inovador. Seu poema é terno, alegre, claro, sereno, travesso, transpirando a beleza e a doçura do poeta aliado à vida, do poeta de bem com ela, ou, pelo menos lutando para que o bem que a vida traz nas suas entranhas possa ser repartido com todos num grande, requintado, solidário e farto banquete. Ágape, prefeririam  os  mais piedosos. Você nos ensina, entre outras coisas, que a vida vale a pena, mesmo que o pão seja caro e a liberdade, pequena. Pergunto ao poeta diante da estranheza com a leitura de sua coluna: terá valido a pena ler a sua matéria da Folha?"

Admirar Lula não significa ficar cego à construção contínua do Brasil, passada do descobridor, em 1500, aos presidentes do País redemocratizado sem que houvesse um tiro de revolução a partir de 1985: "Vejo, em Lula, o grande e exemplar administrador e estadista que mudou o Brasil. Mudar não significa inventar e nem ele jamais pensou ou achou que havia feito isso. Mesmo porque, a construção de um país é obra de muitos, sociedade e governo. O Brasil começou a ser construído em 1500, com Cabral. Todos os presidentes anteriores – todos – deram sua contribuição, uns mais, outros menos, e não temos o direito de jamais fechar os olhos ou negar a notável participação de governos precedentes, principalmente o do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso nesse processo de mudança."

Pela importância da discussão, se Lula foi ou não um presidente diferenciado e se foi ou não atacado de forma preconceituosa até por um poeta que já foi esquerda, abaixo a publicação na íntegra da carta que a Folha de S. Paulo ignorou do seu crítico leitor. Pelo menos, espera-se, tenha repassado a Ferreira Gullar:

 
*Por Elisabeto Ribeiro Gonçalves
Belo Horizonte, 19 de janeiro de 2011.

A
Folha de S. Paulo
E-mail: leitor@uol.com.br  

Prezado redator,

Eu nunca vi, nem mesmo na Folha, uma matéria destilar tanto ódio quanto a do cidadão Ferreira Gullar em Quando dois e dois são quatro (16/01/11). Contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, claro. Toda ela é uma negação rancorosa e irracional da grande obra do ex-presidente nordestino. Lendo-a, tive a sensação de que o cidadão Gullar estava falando de outro país, de outro presidente. E até hoje não entendi a razão de tanto ódio e tanto preconceito.

Eu, felizmente, nunca tive de viver do Bolsa Família nem do empréstimo consignado, mas vejo, em Lula, o grande e exemplar administrador e estadista que mudou o Brasil. Mudar não significa inventar e nem ele jamais pensou ou achou que havia feito isso. Mesmo porque, a construção de um país é obra de muitos, sociedade e governo. O Brasil começou a ser construído em 1500, com Cabral. Todos os presidentes anteriores – todos – deram sua contribuição, uns mais, outros menos, e não temos o direito de jamais fechar os olhos ou negar a notável participação de governos precedentes, principalmente o do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso nesse processo de mudança.

O presidente Lula, não obstante suas poucas letras, como descobriu e destacou o maranhense Gullar, teve a inteligência, sagacidade, descortino e senso de oportunidade de aproveitar, melhorar e aprofundar o que já havia de bom e adotar medidas novas para revitalizar a economia e melhorar a vida dos excluídos. Atenção: não medir essas virtudes com o metro de calcular (ou calgullar?) a extensão de prateleiras abarrotadas de livros. Faltou ao cidadão Gullar o senso de compaixão, tão próprio dos poetas, não para com o ex-presidente (que ele não precisa disso), mas para com os pobres e os marginalizados sociais aos quais Lula dedicou (talvez por ter vivido e sentido na carne as agruras da miséria) boa parte do seu trabalho.

Criticar programas assistencialistas e a especial atenção à valorização do salário mínimo, como fez Gullar com tanta veemência, é muito fácil e cômodo para quem vive de barriga cheia, sem nenhum problema de sobrevivência. O aumento do salário mínimo (a meu ver, ainda aquém das necessidades mais comezinhas do nosso povo) em níveis acima da inflação, ajudou a mudar o Brasil. Não sei de onde o cidadão Gullar pescou essa ideia tão na contracorrrente dos conceitos econômicos modernos. Mas parece que ele esqueceu-se da fome crônica e humilhante do nosso povo quando diz, na crítica a Lula, “que afinal ninguém acredita que com programas assistencialistas e aumento do salário mínimo se muda o Brasil”.

Mas então, cidadão Gullar, é para deixar a imensa parcela do nosso povo, que o poeta tanto defendeu, morrer de fome até que saiam do papel e da prodigiosa cabecinha dos burocratas, planos mirabolantes e engenhosos para matar essa fome de uma vez por todas? Jornalista Gullar, quem tem fome pode ter tudo: menos disposição de esperar, de ter paciência. Vamos deixar o cidadão morrer para só então dar-lhe o anzol e ensiná-lo a pescar, como recomenda a tola, mas esperta boutade dos bem-nascidos, das zelites? Curioso, jornalista, é que até os economistas mais empedernidos asseguram que o aumento real do mínimo, isto é, além da inflação, foi uma medida útil e necessária ao pobre e ao país. Quem está com a razão, os especialistas ou Gullar?

O cidadão Gullar, na ânsia de desmerecer os méritos e  conquistas do ex-presidente, diz “que quem governou foi a equipe técnica de Lula e não ele”. Com essa afirmação tosca, ele se apega a uma obviedade de franciscana pobreza, que não faz jus ao seu talento e erudição: nenhum presidente governa sozinho, o que ele há de ter é sabedoria para escolher bem sua equipe, sagacidade política para contornar dificuldades e definir rumos a serem seguidos e, por fim, a sensibilidade social por incluir todos os brasileiros — ricos e pobres, doutores e analfabetos — ao grande banquete da cidadania plena.

Pergunto então ao jornalista Ferreira Gullar: qual a serventia duma equipe técnica se não a de ajudar àquele que a plasmou? Se o presidente deve saber de tudo e de todos os assuntos, não seria muito mais lógico, barato e menos trabalhoso eleger apenas um homem — o presidente — e dispensar todo o aparatoso entorno administrativo? Pelo que diz Gullar “Lula apenas teve o bom senso de dar prosseguimento ao que os governos anteriores (leia-se FHC) implantaram”.  Acredito que nesse assunto vale bem o ensinamento de Guimarães Rosa: vivendo se aprende; mas o que se aprende, mais, é só fazer outras maiores perguntas.  As equipes assessoras, ou que outros nomes tenham, servem exatamente para isso: para ouvir perguntas e dar a resposta de especialista na matéria. Por acaso, perguntar ofende? Ou talvez, já que o poeta acha que o ex-presidente de nada sabe, vale mais uma vez citar Rosa: a gente só sabe bem aquilo que não entende.

Tive o cuidado de referir-me sempre ao cidadão Ferreira Gullar,  ao jornalista Gullar, colaborador da Folha. Em nenhum momento falei do poeta Gullar. A meu ver, são duas entidades distintas, separadas, independentes. Uma é o cidadão e jornalista Ferreira Gullar, atualmente rancoroso, preconceituoso e crítico leviano do ex-presidente Lula. A outra é o grande e extraordinário poeta maranhense Ferreira Gullar. O poeta continua maravilhoso, e não faço nenhum favor em situá-lo entre os melhores poetas brasileiros. Conheço sua obra de fio a pavio e só tenho motivos para louvá-la, comover-me com ela e agradecer ao poeta esse régio presente que ele até agora nos dá.

Pois merece admiração e respeito quem escreveu Poema sujo, Dentro da noite veloz, Na vertigem do dia, Muitas vozes, Barulhos, Romance de cordel, A fala, A luta corporal, Um programa de homicídio e, por último, Lugar algum em algum lugar, entre outros.  Já não incluo nessa pauta de genial sensibilidade e grandeza poética e literária o seu ofício de crítico de artes — tão reacionário quanto suas posições políticas e ideológicas atuais.

Agora, o cidadão Gullar decepcionou-me. O cidadão de esquerda de ontem bandeou-se, de repente, para a direita nativa alimentada na base do ódio, da negação sistemática, do preconceito e da insensibilidade social. Lembrei-me de que Nelson Rodrigues, à época do Gullar de esquerda, escreveu: excelente Gullar! Ainda hei de vê-lo de um reacionarismo torvo, de um obscurantismo hediondo, mas novamente grande poeta. Nelson acertou em parte, só que não viveu para assistir e aplaudir a transformação de Gullar. Digo em parte, porque grande poeta, qualquer que seja a extremidade do espectro ideológico ocupado por ele, Gullar sempre foi e será. Agora, que eu gostaria, parodiando Nelson Rodrigues, de vê-lo despido do reacionarismo torvo e do obscurantismo hediondo, ah, isso sim, eu gostaria...

Gostaria de ver Gullar reescrevendo sobre o morto: há porém os que não apodrecem, os que traem o único acontecimento maravilhoso de sua existência. Os que, de súbito, ao se buscarem, não estão... E Gullar vai mais longe: a arte é uma traição; os artistas são animaizinhos viciados, vermes dos resíduos, caprichosos e pueris. Eu vos odeio! Ato falho, Gullar?  Eu, cidadão comum, não vos odeio, só lamento esse tardio e estropiado renascimento e descompasso com a vida.

E também gostaria de perguntar a Gullar, que tanto se indigna e critica a política “assistencialista” do presidente Lula, se ele escreveria hoje: e sobretudo é preciso trabalhar com segurança pra dentro de cada homem trocar a arma da fome pela arma da esperança. Não se dizia que eleger Lula era trocar a esperança pelo medo? E o presidente não abriu dezenas de centenas de vagas, de empregos, uma preocupação do poeta quando diz que o poema está fechado: “não há vagas”. Só cabe no poema o homem sem estômago, a mulher de nuvens, a fruta sem preço...Lula não possibilitou que milhares de homens se redescobrissem com estômago, que a mulher, chamada a descer das nuvens, se deliciasse com as oferendas e as promessas da terra e pudesse degustar a fruta, o arroz, o feijão, o pão, o açúcar, a carne e o leite? Pois não era esse o grande, belo e inspirador sonho do poeta? E não teria também o ex-presidente desarmado muitas das armadilhas que inquietam tantos brasileiros, já denunciadas pelo poeta ao dizer que o homem está preso à vida e precisa viver, o homem tem fome e precisa comer, o homem tem filhos e precisa criá-los, há muitas armadilhas no mundo e é preciso quebrá-las.

O que temos nós, homens comuns (que o poeta não se ofenda com o “nós”), de diferente ou de melhor que Luiz Inácio  Lula da Silva? Não é o poeta mesmo quem afirma que somos muitos milhões de homens comuns e podemos formar uma muralha com nossos corpos de sonhos e margaridas? O ex-presidente não teria, com sua sensibilidade de homem comum, nos ensinado (ou tentado) a sonhar mais e melhor, mesmo quando acordados?

Como o poeta avalia hoje o idealismo e a luta de Ernesto Che Guevara? Pois não foi ele quem, profético, em Dentro da noite veloz, presta uma comovida homenagem a Che alertando-o que seu fim está perto, não basta estar certo, pra não morrer de bala; que a bala entra em teu corpo como em qualquer bandido e que a vida muda o morto em multidão. Pois é, poeta, nem toda bala é de metal: há a bala da fome, da indiferença, da humilhação, do desamparo, da descrença, da mentira, da perfídia, da traição...


Não foi o poeta Gullar que reclamou da noite ocidental obscenamente acesa sobre meu país divido em classes? O ex-presidente Lula, com a mesma visão de Gullar, mas usando outras ferramentas, não tentou realizar o desejo do poeta de irmanar o Brasil numa só classe — brasileiros?

Não gostaria de estar na pele de Gullar quando exilado em Santiago do Chile e muito menos ter de escrever relembrando Allende: Quando cheguei a Santiago (...) latifúndios com nome de gente, famílias com nome de empresas também fugiam com dólares e dólares. Allende, em tua cidade ouço cantar esta manhã os passarinhos, a primavera que chega. Mas tu, amigo, já não os pode escutar. Em minha porta, os fascistas pintaram uma cruz de advertência. E tu, amigo, já não a podes apagar. O antigo amigo Salvador Allende mereceria hoje de Gullar um simples e único verso, mesmo anêmico, mesmo sem a força e a beleza poética desses Dois Poemas Chilenos, dos anos setenta?

Novamente concordo com o grande poeta: o sofrimento não tem nenhum valor, não acende um halo em volta de tua cabeça, não ilumina trecho algum de tua carne escura... O ex-presidente também rezava pela mesma cartilha do poeta, estou certo, e, sem nenhum deslumbramento poético, tentou a sua maneira, durante oito anos, aliviar, pelo menos em parte, o sofrimento das mulheres e dos homens brasileiros. O ex-presidente Lula celebrou diariamente, sem o charme da poesia, o amor à vida, cantou-a com seu (e meu) povo, acendeu em volta da cabeça desse povo um halo não de sofrimento, mas de alegria,  de esperança e fé no prosaico do cotidiano e da vida. O poeta chama seu poema de “obsceno”, o qual, como o salário de um trabalhador aposentado, terá (o poema) o destino dos que habitam o lado escuro do país. Lula não fez esforços para levar luz para todos, como é do querer de todos, não só do poeta?

E a homenagem do poeta ao grande Oscar Niemeyer, que se diz o único comunista do Brasil (Oscar... não faz de pedras nossas casas: faz de asas; Oscar nos ensina que a beleza é leve), ainda está de pé?
Por falar no comunista Oscar, ocorre-me à memória a homenagem que o poeta ludovicence presta aos Sessenta Anos do PCB: eles eram poucos, não eram mais de setenta... mas tinham sede de justiça e estavam dispostos a lutar por ela... quem contar a história de nosso povo e seus heróis tem que falar dele. Ou estará mentindo.  O mesmo acontece com Lula, poeta: quem contar a história do nosso povo e seus heróis tem que falar de Luiz Inácio Lula da Silva, quer goste ou não dele. Caso contrário estará também mentindo.

Sei, poeta, que tudo muda, os sentimentos mudam, mudam as posições políticas e ideológicas, e dizem até que os valores mudam, e o que valia ontem não tem serventia hoje. Há coisas que são acessórias, provisórias, dispensáveis e devem mudar com o passar dos anos, com a aquisição de novos conhecimentos, com a própria vida, enfim. Quando menino, acreditava em bicho-papão, Saci Pererê, almas do outro mundo e achava que no horizonte a Terra se encontrava com o Céu de delícias.  Mudei, já não tenho essas certezas. Mas sei também que o mutável gira em torno de um núcleo rígido, que nos identifica, nos caracteriza, nos faz diferentes, não obstante sermos geneticamente iguais. Por isso, poeta, uma pergunta: o homem pode (ou deve?) mudar sua história, reescrever sua biografia com ódio, como se ela hoje o envergonhasse? Absorver e defender com entusiasmo férreo o que antes lhe parecia indigno, indecoroso e perverso? Seria crível, hoje, o poeta Gullar escrever algo como Alguns anos de PPS? E pergunto ao extraordinário poeta do igualmente extraordinário Omissão  se não é estranho que um poeta político dê as costas a tudo ... que se passa, poeta? Adiaste o futuro? Onde está o poeta, grande poeta, que um dia em Meu povo, meu abismo escreveu: meu povo é meu abismo, nele me perco, a sua tanta dor me deixa surdo e cego... se ele não vira em mim veneno ou canto – eu morro.

O que pensa hoje esse mesmo e magnífico poeta que dedicou À Revolução Sandinista, reconhecidamente subversiva, de esquerda,  o retrato sem retoques e sem retórica de Nós, Latino-americanos? Nesse retrato, quase desenhado com a pena mergulhada em rebeldia e sangue, o poeta diz que somos todos irmãos não porque tenhamos a mesma mãe e o mesmo pai: temos é o mesmo parceiro que nos trai; somos todos irmãos não porque seja o mesmo o sangue que no corpo levamos: o que é o mesmo é o modo como o derramamos. Pois bem, poeta, esse parceiro já não nos trai? Esse parceiro, milagrosamente, aliou-se e defende hoje o índio, os favelados, os oprimidos, os desesperançados, as minorias marginalizadas, os sem-terras, os sem-casas, os sem-tudo? Esse parceiro, daqui e de alhures, por acaso renunciou à mentira, à hipocrisia, à voracidade e estendeu a mão adornada de pérolas e brilhantes a esses tantos irmãos latinos, meus e do poeta?  Quem, poeta, reconhece a rainha que há numa nordestina como você pergunta com tanta sensibilidade em Uma nordestina? Não sei, não sei, poeta... mas será que você ainda afirma, como em Digo sim, que a vida nós a amassamos em sangue e samba... que nós fazemos a vida alegre e triste, cantando em meio à fome e dizendo sim – em meio à violência e a solidão dizendo sim – não digo que a vida é bela, tampouco me nego a ela: - digo sim.

O poeta, o cidadão Ferreira Gullar está irreconhecível em sua crítica ao ex-presidente. Tão irreconhecível que chega a recorrer ao óbvio ululante rodriguiano quando “diz que a melhoria da sociedade é um processo longo, nenhum governo faz tudo”. Claro, poeta, de tão óbvio, nem dá para discutir isso.

O poeta Gullar reza agora pela mesma cartilha da intolerância da mídia em geral, e em especial de dois jornalistas especialmente rancorosos: Guilherme Fiúza (de Época) e Diogo Mainardi (de Veja). Gullar repete esses dois inimigos mortais do presidente (prestigiosa recíproca que Lula não lhes dá) quando escreve: “...é impossível conhecer a fundo os problemas de um país sem ler um livro; quem os conhece apenas por ouvir dizer não pode governar”. Aqui o poeta deixou-se cegar pelo ódio cesarino e omite-se  de registrar alguns fatos importantes na vida do ex-presidente. Um é que Lula aprendeu as primeiras letras no áspero sertão de Caetés, onde nasceu. Depois cursou a Universidade da vida e essa Universidade, poeta, fornece de tudo, do giz ao professor, sem um dia que seja de férias. E Lula, aluno aplicado, não cabulou uma aula sequer.  Quer saber mesmo, poeta? Acredito que Lula cursou a Universidade na barriga da mãe, dona Lnidu, e teve sua formatura, sua colação de grau, no momento de incertezas e riscos  de um parto no  áspero e desolado sertão do Nordeste. A propósito, poeta, ocorreu-me à lembrança trecho da peça Agreste, de Newton Moreno, no qual ele diz:  quem nasce no sertão, duas coisas pode ter: ou ser muito abençoado ou ter vindo pra sofrer; ou ter vindo viver uma graça ou pagar com a desgraça na medida do viver. 

Certamente, poeta, Lula nasceu cercado de sofrimento, mas, predestinado, sei lá,  pôde viver a graça, a felicidade de  transformar o nosso país e dar a seu povo, principalmente à parcela mais triste, a alegria de viver num pais mais humano, mais receptivo, contribuindo decisivamente para desobrigar esse povo de ter de  “pagar com a desgraça na medida do viver”.    Depois, poeta, Lula não “conhece os problemas do país apenas de ouvir dizer”. Esquece-se o poeta do longo, diário e tenaz aprendizado do ex-presidente nas muitas eleições e debates dos quais participou e nas Caravanas da Cidadania percorrendo o país de ponta a ponta, vendo e ouvindo seu povo e seus problemas de perto e já formulando as soluções que viria a adotar.

Quem nos assegura, poeta, que títulos e honrarias garantem a sabedoria necessária para governar-se um país? Você há de concordar que o Brasil foi governado, de 1500 a  2002, por uma penca de generais e doutores, com seus currículos de caserna ou  apinhados de menções honrosas, teses e trabalhos premiados. O Brasil, segundo raciocínio do poeta, já deveria ter sido salvo há centenas de anos.  O poeta queria, certamente, que Lula fosse um “mestre” no mais puro sentido acadêmico para ter a pretensão de governar o Brasil. Permita-me novamente, poeta, insistir em mais um ensinamento rosiano: mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”.

O preconceito do genial poeta volta a se manifestar ao dizer que Lula, “destituído de senso crítico, atribui a si mesmo (“ um torneiro mecânico”) o mérito de ter evitado que crise atingisse o Brasil”. É sintomático o desdém do poeta ao aspear (ou aspar, talvez) torneiro mecânico, uma lepra funcional, indigna de qualquer cidadão que se preze. Pois bem, poeta, dizem os entendidos que o abjeto torneiro mecânico, com suas  medidas anteriores, com sua sagacidade (o único mérito que o poeta vê em Lula, se é que ele acha isso realmente um mérito) de sugerir e adotar, de imediato, providências anticíclicas, transformou o tsunami lá de fora na marolinha cá de dentro.  Marolinha que tanta crítica mereceu de acadêmicos e oposicionistas presunçosos e que, ao final, tiveram de curvar-se às razões do ex-presidente e reconhecer o seu acerto. A crise de 2009, poeta, pouco afetou o país, mas tive oportunidade de ler da pena de economistas reverenciados (na própria Folha, entre outros veículos) que 2009 seria uma carnificina... Quem estava certo, os doutos do apocalipse, os sábios das academias ou o analfabeto pernambucano?

É uma pena que o notável poeta, com já confessou no belíssimo Traduzir-se, não seja mais ninguém, não sinta mais estranheza e solidão, não delire mais, não se espante mais e não se saiba mais de repente.

Além da qualidade literária, são notáveis a generosidade e a modéstia de Gullar em um de seus belos Poemas Portugueses: nada vos sovino, com minha incerteza vos ilumino. Mas nesta atual fase gullariana talvez seja mais verdadeiro reescrever esses versos assim: tudo vos sovino, com minha conversão vos desatino.

Um dos aspectos mais incompreensíveis, é a sua lembrança, ao final, de que o ditador Médici ( que você chama generosamente de “presidente”) teve  82% de aprovação popular em 1974, próximo, portanto,  dos quase 90% do presidente Lula. Ora, poeta, sua comparação é despropositada e insensata. Se não falha a minha nanomemória, Médici foi um dos ditadores mais impiedosos da safra de 64-85. Perseguiu, torturou, exilou e matou. Lembra-se dos DOI-CODI da vida, da Oban e outros tantos aparelhos e organizações repressoras? Era uma época em que  o Brasil vivia a vontade  e a tirania dos generais-ditadores. Lembra-se, poeta, do Milagre Brasileiro, inventado pelo ditador com a manipulação de dados estatísticos e trombeteado pelos arautos da ditadura? Lembra-se que Médici (e os outros ditadores que se lhe seguiram) viveu e desmandou respaldado no draconiano AI-5 de 68? Lembra-se que a grande imprensa, que apoiou o golpe de 64, continuava a aplaudir gratuitamente o governo do tirano? Tudo era manipulado, poeta, e com certeza os 82% de que você tanto de orgulha.  Ao contrário de Lula, que teve a imprensa, os meios de comunicação visceral, raivosa e agressivamente contra ele, mentindo, distorcendo e achincalhando o presidente.

Vivemos a democracia plena e o presidente Lula nunca fez rigorosamente nada, nunca moveu uma palha sequer que pudesse ameaçá-la. Pelo contrário, ele não moveu uma palha para reescrever a Constituição. É sintomático que a imprensa tenha tentado colocar, reiteradas vezes, na boca do presidente Lula,  palavras de apoio a sua reeleição. Nem isso ele nunca quis nem permitiu: trabalhou limpamente para eleger sua sucessora,  e solenemente, como convém a quem está por cima da carne seca, não deu a mínima e fez-se de cego e surdo à campanha suja, sórdida e desesperada da oposição, que teve o integral  apoio da soi disant grande imprensa e, pelo andar da carruagem, do poeta. A aprovação recorde e histórica do presidente, para desespero da mídia, reflete a magnitude real de reconhecimento popular a um excelente governo, voltado exclusivamente  aos interesses e necessidade do Brasil e seu povo. Lula presidente não manipulou nem distorceu dados e nem censurou, não obstante a grande imprensa, vez por outra, o acusasse dessas práticas. Deu para entender, poeta, a diferença entre os 82% de aprovação do ditador  Médici e os quase 90% do democrata Lula?

Pareceu-me, poeta,  curiosa a coincidência entre o título de sua matéria (Quando dois e dois são quatro) e o título de uma das mais belas, comoventes e ternas poesias suas (Dois e dois: quatro). Curiosa porque sua coluna na Folha é bizarra, incoerente, e deslocada da realidade, parecendo sair da pena de  outro qualquer, menos da sua. Seu poema, ao contrário, é o retrato fiel do Gullar que eu conheci e aprendi a admirar e querer bem. Sua matéria  da Folha é áspera e equivocada, traindo, ao que parece, o homem, o cidadão reto, o artista criador e inovador. Seu poema é terno, alegre, claro, sereno, travesso, transpirando a beleza e a doçura do poeta aliado à vida, do poeta de bem com ela, ou, pelo menos lutando para que o bem que a vida traz nas suas entranhas possa ser repartido com todos num grande, requintado, solidário e farto banquete. Ágape, prefeririam  os  mais piedosos. Você nos ensina, entre outras coisas, que a vida vale a pena, mesmo que o pão seja caro e a liberdade, pequena.  Pergunto ao poeta diante da estranheza com a leitura de sua coluna: terá valido a pena ler a sua matéria da Folha?

Enfim, poeta, continuo a admirá-lo, a reverenciá-lo e a me deleitar com sua poesia e seu trabalho literário. Mas, principalmente com sua poesia: inovadora, rica, original, denunciadora e, acima de tudo, humana. Humanamente e soberbamente humana. Aqui, nossos caminhos se separam: eu continuo um cidadão de esquerda, o poeta se bandeou para a direita. Ora, direis, esquerda... Sim poeta, eu continuo, politicamente ao lado de Oscar Niemeyer, Norberto Bobbio e centenas de milhares de outros.  Acho até, poeta, que esse negócio de se propalar que hoje já não existe essa dicotomia direita-esquerda é, muito mais que uma bobagem e uma falácia, uma esperteza. Esperteza dos poderosos, dos donos do mundo e dos nem tão poderosos e nem tão donos, mas com condições e veículos de manipular e deformar informações, dourar mentiras, denegrir quem lhes contestam e incensar seus pares ou quem pode ser útil a eles.

O ex-presidente Lula disse certa vez  que após os sessenta anos só os idiotas são de esquerda. Aqui eu discordo do presidente. O poeta, pelo menos uma vez, há de  concordar com ele. Eu ainda fico com as palavras do grande escritor italiano, Norberto Bobbio, um dos mais notáveis pesadores políticos contemporâneos, escritas em Direita e esquerda, razões e significados de uma distinção política, em 1994: enquanto existirem homens cujo empenho político seja movido por um profundo sentimento de insatisfação e de sofrimento perante as iniquidades das sociedades contemporâneas, o termo esquerda fará sentido. O grande Gullar se antecipa à história para fazer o julgamento tortuoso do ex-presidente. Não entendo nem a leviandade, nem as distorções, nem a pressa. Ciúmes? Mais uma vez Rosa: mas ciúme é mais custoso de se sopitar do que o amor. Coração da gente — o escuro, escuros.

Para finalizar, eu gostaria de ler novamente versos do poeta escritos entre 1975-1980, como em Subversiva:  a poesia quando chega (...) relincha como puta nova em frente ao Palácio da Alvorada. E só depois reconsidera: beija nos olhos os que ganham mal, embala no colo os que têm sede de felicidade e de justiça. E promete incendiar o país”. Não foi mais ou menos o mesmo que escreveu outro genial poeta, o gaúcho Mário Quintana, ao perguntar: quem disse que a poesia é apenas agreste avena? A poesia é a eterna Tomada da Bastilha, o eterno quebra-quebra, o enforcar de Judas, executivos e catedráticos em todas as esquinas... Será, poeta, que teremos primeiro de relinchar aos nossos próprios ouvidos, ou ? pior ? enforcar a nós mesmos?

Com admiração e respeito imensos do patrício,

* Elisabeto Ribeiro Gonçalves é piauiense radicado em Belo Horizonte, com dedicação profissional à oftalmologia

Um comentário:

blog dom severino disse...

Quem é sesse senhor que se assina com o singelo nome de Elisabetho Ribeiro Gonçalves, para criticar o poeta, critico de arte, jornalista, dramaturgo Ferreira Gullar? A esse senhor lhe falta história biografia e também participação na política nacional. O que convenhamos sobra na vida desse maranhense ilustre, um intelectual respeitado e admirado por toda a inteligência nacional. Não vou me aprofundar nessa discussão estabelecendo diferenças entre o critico e o criticado, porque a história de vida de cada um fala por si. Esse senhor Elisabetho Ribeiro Gonçalves é para mim e para o Brasil, um ilustre desconhecido. Lula para muita que pensa e não depende de favores dos governantes de plantão, não passa de um jaboti que foi colocado sobre a árvore.